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domingo, 27 de março de 2011

Dolo Eventual, Frank e suas Fórmulas

Inexiste tema mais 'debatido', no plano da Teoria do Delito, que a diferença entre dolo eventual e culpa consciente. Sobretudo quando ocorrem acidentes de trânsito com repercussão - como ocorreu em Porto Alegre, envolvendo o pessoal da Massa Crítica.
No caso específico, porém, o debate está colocado entre dolo de lesão ou de homicídio, o primeiro consumado e o segundo tentado.
Após o evento escrevi um post sobre a inutilidade normativa e dogmática da categoria dolo eventual, exceto, logicamente, a criação de uma regra extremamente aberta que cria uma força de atração ao punitivismo. Mas o post ficou demasiado longo e não publiquei.
Nos últimos comentários, o Antônio e o Anônimo retomaram o tema e mencionaram, como instrumento interpretativo, a fórmula de Frank.
Frank, dogmata alemão ícone da Teoria do Delito - a propósito, conheço poucos penalistas alemães que abordam tema distinto da Teoria do Delito, a não ser quando sirva para justificá-la -, cria mecanismo teórico que resolveria o problema da definição entre dolo eventual e culpa consciente. E a importância nos critérios de diferenciação reside no fato de que ambos os processos de representação mental apresentam os mesmos elementos: (a) o sujeito pretende obter um resultado (lícito ou ilícito); (b) não deseja o resultado ilícito visualizado (representado) como hipótese real; (c) age; e (d) obtém o resultado representado não desejado. Na culpa consciente como no dolo eventual estes elementos são comuns. A diferença é que na culpa consciente o sujeito acredita 'sinceramente' na capacidade de evitar o resultado; no dolo eventual o autor da ação anui com a possibilidade de que ocorra o resultado ilícito, nunca pretendido mas projetado mentalmente ('assumir o risco').
Como a diferença está radicalmente posta nos elementos subjetivos (vontade, representação e anuência), as dificuldades aparecem.
Frank, como todo dogmata, tentou criar uma fórmula para resolver o problema. Segundo ele, o julgador deveria colocar-se ex ante factum na posição do 'infrator' e indagar: se o resultado ilícito representado mas não desejado fosse de certa ocorrência o sujeito interromperia a ação? Se o resultado fosse de certa ocorrência e o sujeito interrompesse a ação estaríamos no campo da culpa consciente; se o sujeito, mesmo com a certeza do ilícito, seguisse na conduta, haveria imputação de dolo eventual.
Ocorre que a fórmula não auxilia em nada. Trata-se, como toda a dogmática da teoria do delito, de uma fórmula normativa idealizada. As respostas seguem com base em presunções irrefutáveis.
Não apenas porque inexiste a possibilidade de o julgador deslocar-se no tempo e invadir a psique do 'infrator' para determinar o seu desejo, mas, sobretudo, porque este raciocínio só empodera quem está no papel de decidir. Fundamentalmente porque trabalhando com fórmulas metafísicas inexiste possibilidade de refutar a tese que o julgador estabelece como verdadeira.
Frente a esta inegável dificuldade, a jurisprudência - que necessita resolver os problemas da vida e não os casos teóricos da teoria do delito - criou as suas próprias fórmulas: a partir de elementos concretos e objetivos comprovar os elementos subjetivos.
Assim, p. ex., alta velocidade aliada com ebriez: dolo eventual. Apenas um dos elementos, culpa consciente.
Compreendo o esforço dos Tribunais, mas se a teoria do delito cria equívocos de ordem normativa (falácia metafísica), a jurisprudência incorre em uma falácia empiricista, pois não é crível que de dados objetivos se projetem elementos subjetivos. São planos distintos, conforme resumido em outra fórmula, de ordem filosófica, denominada Lei de Hume, na qual são incabíveis as apresentações de dados empíricos para desconstruir teses normativas e vice-versa.
A solução do problema, desde o meu ponto de vista, inexiste. Os Tribunais seguirão objetificando elementos subjetivos, isto porque a Legislação incorpora os delírios metafísicos da teoria do delito.
Mas se não há solução, há possibilidade de redução dos amplos espaços de discricionariedade criados pelas fórmulas abertas do Direito Penal: trabalhar cada vez mais com conceitos mais claros possíveis, ou melhor, com conceitos menos obscuros possíveis. No campo da tipicidade subjetiva, uma das saídas seria centralizar os juízos de imputação em apenas duas categorias centrais: intencionalidade e acidentalidade (dolo e negligência).
Inclusive porque em termos de resultado punitivo (pena) não há diferença entre condenação por dolo direto ou eventual ou culpa consciente ou inconsciente - mas ese era o tema do post que não publiquei.
Tema complexo, post longo - exatamente como não gosto de escrever. Mas ocorre...
E desculpem o sexismo da imagem, mas não pude resistir.

7 comentários:

  1. Salo!
    Continuas com o dom de conseguir expressar tudo aquilo que me parece perdido em pensamentos. Parabéns! Saudades de suas aulas.

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  2. Salo, o anônimo também era eu...
    Este post expressa um conflito que venho tendo desde que deixei de participar de estudos exclusivamente dogmáticos e passei a pesquisar contigo no GCrim: Percebo os equívocos criados pela dogmática, que transforma toda a realidade em uma discussão teórica e esquece da riqueza da realidade, porém, ao mesmo tempo não vejo como se trabalhar sem a dogmática, pois ela deixa claro os conceitos e, de certa forma, estabelece seus limites de aplicação. Este é, mesmo que indiretamente, o tema que pretendo abordar no meu TCC sobre a viabilidade do processo simpatético no juízo de culpabilidade. Mas ainda não consegui resolver esse conflito que tenho!
    Abraço,
    Antônio

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  3. Dolo eventual, na propositura de Frank, se verifica apenas na celebre musica do REI, em que ele avisa seu(s) possivel(s) caroneiro(s) que, em virtude de um amor perdido, vai DESCER pelas CURVAS DA ESTRADA DE SANTOS na LENHA e se morrer/matar, aziras.

    (risos)

    Fora do cancioneiro, JAMAIS vi, e nao existe como nao concordar com Zaffaroni (e, por conseguinte, com Salo) no instante em que esse criterio infeliz que EXIBE "culpa", mas pune como "dolo" trata-se de mero instrumento da vontade (sistemica) de punir.

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  4. Salo,
    Já que você escreceu o post, publique-o, por favor.

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  5. velho, ficou grande e ainda estou trabalhando. mas será postado. valeu!

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  6. fiquei tentado a reproduzir a solução que sistematizou a fórmula de Frank, para que os estudantes entendam o que não tem lógica... mas esse aqui é um espaço de respeito, familiar... rs

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