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domingo, 24 de outubro de 2010

Prezada Mestre C.

Penso que eu não seja a melhor pessoa para orientar ou dar um parecer sobre o teu projeto. Ando demasiado cético com a Academia e do que tenho presenciado ultimamente tem sido difícil diferenciar projetos de monografia, de dissertação ou de tese. Infelizmente já tive que assistir aprovação de projetos de tese de doutorado sem hipótese, projetos baseados em mero relatório, projetos que se perdem nas construções metafísicas da dogmática. Muitos, inclusive, autonominados críticos.
Trabalho, ultimamente, com criminologia e penologia - seja lá o que for isto. Mas sempre tentando fugir da limitação que são os olhares dogmático do direito e ortodoxo da criminologia, cada vez mais pobres, cada vez mais distantes da realidade da vida, cada vez mais interessados nas fundamentações do sistema do que nas pessoas que são vitimizadas pelas agências de sequestro.
Se desejas sinceridade, só tenho a dizer que um trabalho que propõe exclusivamente revisão bibliográfica é, desde o meu ponto de vista, insuficiente, teórica e metodologicamente. E em muitos percebo, inclusive, uma insuficiência ética. Perguntaria: "onde está a vida?"; "onde estão as pessoas que morrem diariamente nas entranhas do sistema penal?"; "onde está o comprometimento ético com estes grupos criminalizados?". Sem dúvida não estão no embate retributivista de Kant e Hegel, no defensivismo periculosista de Liszt, no falso humanitarismo de Ancel ou nas confusas contruções híbridas de Roxin ou de Ferrajoli e os seus numerosos seguidores na Iberoamérica. Todos, absolutamente todos - mesmo aqueles que postulam a constrição do punitivismo -, fornecem cotidianamente armas (de justificação) à máquina punitiva genocida do sistema penal.
O cenário acadêmico, na graduação e na pós-graduação, é aterrorizante: descrição, relatórios e narrativas historiográficas. Capítulo primeiro: histórico - normalmente uma apresentação falha e mal acabada de fragmentos de dados; Capítulo segundo: fundamentação teórica - invariavelmente a reprodução, em relatório, da "teoria de base" que informa o trabalho; Capítulo terceiro: problema de pesquisa - o confronto das teorias atuais com a hipótese que se quer validar. Lógico, no doutorado estes três capítulos viram cinco, mas sempre dentro da mesma estrutura. Depois: defesa, aprovação, titulação, publicação. Eis o itinerário de uma grande ilusão: o acadêmico agora está pronto para lecionar e orientar seus alunos a realizar o mesmo percurso.
E o trabalho defendido ficará guardado na memória do autor como a pesquisa que encontrou, nas entranhas teóricas da história do direito penal ou da criminologia, um fundamento inovador para aquele problema que ninguém nunca havia pensado.
C., desculpe-me a fra(n)queza deste longo e-mail.
Escrevo para mim, como catarse, como desabafo frente ao triste quadro que venho presenciando.
Se efetivamente queres uma "orientação", fique com duas. Realize uma pesquisa em que a interação humana seja a questão central, em que seja inegociável a necessidade de olhar e interagir com as pessoas.
A segunda, que creio seja a mais sensata, esqueça o que escrevi, lapide um pouco mais o projeto que me enviaste - que está bem redigido - e apresente no Programa de Pós-graduação escolhido. Tens boas chances de a pesquisa ser aprovada. Creio, inclusive, que alguns professores ficarão entusiasmados com a idéia.
Saudações acadêmicas
SC

14 comentários:

j. disse...

aiiiie...
pessoalmente, prefiro teus emails telegráficos :>

Rodrigo Moretto disse...

Prezado Salo
Acho que vou compartilhar contigo a tua posição, também ando extremamente cético com a Academia.
Foi um brilhante desabafo que deve ser compartilhado com todos.
Na verdade este teu desabafo foi um grande manifesto
Brilhante Salo

Att
Rodrigo Moretto

Anônimo disse...

"...Realize uma pesquisa em que a interação humana seja a questão central, em que seja inegociável a necessidade de olhar e interagir com as pessoas."
Magnífico.
Abraço,
RTS.-

Gabriela disse...

Nossa, fazia uns dias que não passava por aqui... sempre que passo algo me surpreende.
Só tu mesmo!
Bjos
Gabi

Thiago disse...

Putz...

Marcelo Mayora disse...

Mais um belo texto.

Mari Garcia disse...

Ufa, ainda é possível respirar...
Salve, Salo!

Lucio Zabot disse...

Parabéns pelas palavras.
Essa luta eu tentei realizar em outra área - bem distante ao Direito, diga-se de passagem - no entanto, inglória.
A Academia vive a crise da "Zona de Conforto" na "Ilha da fantasia". Não existe cobrança, não existe aproximação com a realidade. Apenas a repetição daquilo que os orientadores acreditam ser o ideal (normalmente o assunto abordado na sua própria tese).
Subi, degrau por degrau, até atingir o "Dr.", que não significa nada se não formos realmente competentes e tive a oportunidade de ser "professor". Uma experiência ótima, em um local insalubre, onde se agigantam as visões políticas e o lugar comum e não os desafios da vida que nos fazem crescer.
Hoje, longe de tudo isso, olho para o passado e me orgulho de ter trilhado meu caminho da melhor maneira, mesmo que o sistema tenha lutado contra isso.

Precisamos que a Academia forme opiniões, e não não meramente reproduza aquilo que a "Ilha da fantasia" imagina ser o correto.

Para encerar, ainda vejo a luz no final do túnel... há quem "nade contra a maré". Mas como diz o ditado "uma andorinha só, não faz verão.

Abraço

Anônimo disse...

Talvez eu esteja mais sensível, mais nervosa, aflita e insegura do que costumo ser, acredito que em virtude de estar escrevendo meu TCC, e talvez por isso chorei lendo essa “orientação” – e confesso que em certos pontos me identifiquei muito - é tão complicado fugir do obvio, é deprimente estar finalizando 5 anos de curso e perceber que não há nele quase nada de “humano”... Mas procurar resposta ao teu (meu) questionamento talvez seja a minha quimera e o que me mantenha apaixonada: "onde está a vida?"; "onde estão as pessoas que morrem diariamente nas entranhas do sistema penal?"; "onde está o comprometimento ético com estes grupos criminalizados?". Se um dia eu encontrar eu te conto.
EFL

Hique disse...

Minha cara mestre C.:
Sugiro que procures a orientação do Saulo de Carvalho, um genérico do Salo (entusiasta das intervenções militares nos presídios) que anda dando entrevistas por aí - dizem que ele bem aceita introduções históricas. Ou, ainda, a Renata Costa (UPF, Esade), que em troca de um doce de leite Conaprole orienta até mesmo tese sobre recurso em sentido estrito.
Abraço,
Hique

gabrieldivan disse...

Eu sei que o tema do post esta mais para "chorar" que qualquer coisa, mas FATO que o Hique, acima, OWNOU os comentarios - hehe.

Desabafo PRECISO (em varios sentidos da palavra), Salo!

Zé disse...

Para mim, o interessante foi que o desabafo por mais sentimento no frigorífico acadêmico foi feito através de uma "carta", honrando o apelo por mais vida na ciência com um instrumento E conteúdo "sensível". Já não bastassem as barreiras epistemológicas e com o perdão das generalizações, digamos que inclusive existencialmente as interações são desestimuladas na inteligentsia jurídica.

Renata Costa disse...

Valeu Hique, mas desde que me perguntaram qual era a contribuicao da minha tese para o Direito, decidi orientar so cego no meio da rua... Por outro lado, o vidrao de Copranole presenteado ta fazendo um sentido...

Achutti disse...

"Quanto menos 'gente' na pesquisa, melhor."