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segunda-feira, 14 de junho de 2010

Lombroso Não Vestia Benetton

A Mônica Delfino me recomendou a leitura do texto abaixo, publicado na Folha, Caderno Ilustríssima, de ontem.
Depois da leitura, entendi ser interessante disponibilizar no Antiblog. Considero bastante adequada a leitura realizada pela Lilia Schwarcz, inclusive no que diz respeito ao conteúdo estritamente criminológico - se é que exite um "conteúdo estritamente criminológico".
Nas fotos, algumas das várias obras primas do Oliviero Toscani.

ENTRE COREANOS E BOLIVIANOS – O DESTINO PAULISTANO DE LOMBROSO
[Fonte: Folha de São Paulo, 13 de junho de 2010]
Lilia M. Schwarcz

Quem chega ao bairro paulistano do Bom Retiro e dá de cara com um novo e vistoso shopping não suspeita que ele se chame Lombroso Fashion Mall. A pátina do tempo e a rotina do dia a dia fizeram com que o nome deixasse de causar qualquer estranhamento, até porque o complexo de lojas está localizado na rua Cesare, em versão reduzida na placa de esquina; Cesare Lombroso, para aqueles que gostam de nomes completos. Nada que nossa vã filosofia ocidental não explique, entenda ou naturalize.
Na propaganda, que faz o gosto da clientela local, anuncia-se que ali está "o melhor do Bom Retiro", e não é para menos. Há um pouco de tudo: moda feminina e masculina, moda criança, moda evangélica, moda festa, moda para avantajados (como define o manual dos bons modos politicamente corretos, que troca seis por meia dúzia), lojas de informática, de artigos esportivos, de calçados, joalherias e bijuterias, e, como não poderia faltar, uma ampla praça de alimentação; costume que já faz parte do cotidiano daqueles que procuram esse tipo de diversão consumista. Enquanto o bolso paga caro, a alma se alimenta, e dá-se um jeito de redimir qualquer culpa causada por excesso pecuniário.
ARREPIO. Mas como disse Dostoiévski, em "O Idiota", "tem coisa que não cabe nas palavras" e, nesse caso, dá um certo arrepio ligar o nome da criatura ao que acontece nesse templo dos gastos locais. De um lado, um edifício pronto para receber uma população híbrida em sua origem e gostos.
De outro, um cientista que ficou famoso em finais do século 19 por causa de suas teses de determinismo racial, e por liderar a escola de antropologia criminal italiana, que não só manteria a fama até os anos 1930 como viraria adjetivo: ser chamado de lombrosiano não era, com certeza, um bom alvitre.
Cesare Lombroso não é, pois, nome de um tio simpático, ou de um parente italiano distante, que teria enriquecido por conta do café; aquele que fez a fortuna de São Paulo a partir dos anos 1870. A data coincide, mas a situação é das mais diversas.
Lombroso nasceu no seio de uma família abastada de Verona, em 1835, e se dedicou à carreira de médico: frequentou, primeiramente, a Universidade de Pavia e depois a de cirurgia em Gênova. Em seguida, se voltaria para a nascente ciência da loucura e, não por coincidência, faria parte das rodas de Viena do "fin de siècle". Não por acaso, também, selecionaria a psiquiatria como campo de atuação e advogaria a tese de que o meio determina a mente.
PRIMAZIA DA RAÇA. Dos estudos sobre loucura Lombroso passaria aos de higiene e se lançaria a uma nova área, a medicina legal, pautada pela noção da primazia da raça sobre o indivíduo.
"Ninguém escapa aos limites de sua raça", diria ele, anunciando uma nova perspectiva para a ciência da época, em que a regra era a prevenção. Em 1876, Lombroso publica o livro que lhe traz renome mundial -"O Homem Delinquente" [Ícone Editora] – e se transforma, por conta de suas teses na área do atavismo e da frenologia, em grande personalidade científica.
Criada pelo físico alemão Joseph Gall e também conhecida como carecteologia ou fisiognomia, a frenologia partia da certeza de que características atávicas "exteriores" corresponderiam a espelhos de aspectos invisíveis e "interiores". Ou seja, estigmas físicos e morais poderiam indicar, com precisão, traços de delinquência e loucura, presentes ou futuros.
Assim, sinais como a linha solitária na palma da mão, insensibilidade à dor, pederastia, epilepsia, mas também orelhas de abano, testas altas e lábios grossos seriam evidências de um corpo em desequilíbrio e degeneração. E pasmem os modernos que frequentam o shopping Lombroso: para o cientista, as tatuagens representavam prova inconteste de perturbação mental.
No entanto, segundo tal teoria, pior do que raças "puras" (as inferiores, no caso) eram as mestiçadas. Na opinião de Lombroso, a mistura de povos diversos levava sempre a "produtos falidos, decaídos e imprestáveis".
E o antropologista seria logo convertido em pensador dileto do final do 19, uma vez que, naquela era das certezas, oferecia a melhor das utopias: prender o criminoso antes que ele imaginasse praticar o ato. Dizem que cada momento tem a utopia que merece e, nesse caso, a redenção significava erradicar o mal antes que ele ousasse se apresentar.
Cesare Lombroso faria vários seguidores em sua terra – como Enrico Ferri, renomado criminologista italiano, que esteve no Brasil em 1908 e causou furor –, mas também aqui nos trópicos. Um dos mais conhecidos foi Nina Rodrigues (1862-1906), médico da escola baiana que se devotou igualmente a estudos de loucura e criminologia. É dele a máxima de que era "melhor esquecer a doença e atentar para o doente": o mestiço. Isso num país como o Brasil, a essas alturas definitivamente misturado e doente, pelo menos para Nina Rodrigues.
DOIS CÓDIGOS. Não é fato de somenos importância Nina Rodrigues publicar, no contexto da abolição da escravidão, um opúsculo chamado "As raças humanas e a responsabilidade penal" (1894), em que propunha a existência de dois códigos civis: um para brancos e outro para negros. É dele também o ensaio "Mestiçagem, degenerescência e crime" (1899), o qual, dedicado ao mestre italiano, mostrava como povos híbridos não escapavam, mesmo que tentassem, da "degeneração".
O médico ilustrou sua tese com o exemplo de uma família, devidamente selecionada em Serrinha, no interior da Bahia, e o resultado da mistura (segundo o cientista) surgia indiscutível: o pai ébrio, a mãe epiléptica, um filho tatuado, outro gago, outro com mania de ler poemas nas algibeiras e ainda uma filha portando síndrome de solteirona. A conclusão era radical: não se escapava aos desígnios da natureza.
No Brasil, tais teorias não poderiam ser mais avassaladoras. Numa época em que a República exaltava a cidadania, as teorias científicas transformavam igualdade em balela e livre-arbítrio em subjetividade filosófica.
RAÇAS E PENDORES. Nina Rodrigues, por sua vez, tentaria interferir no Código Penal de 1894 opondo-se ao jusnaturalismo, ou seja, ao princípio da universalidade do corpo de leis. "Os homens não nascem iguais", disse ele. "Esse é um suposto dos homens de direito pois sem ele não haveria leis; mas nós, homens de ciência, bem o sabemos: os homens são profundamente diferentes em suas raças e pendores."
Interessante é que não só Lombroso virou shopping, como Nina Rodrigues transformou-se em rua e praça de São Paulo. A homenagem está localizada no bairro da Liberdade, e lá se abrigam o Ministério do Trabalho e do Emprego, o Instituto Nacional do Seguro Social, a Companhia de Engenharia de Tráfego e, "last but not least", o Banco do Brasil. Para um cientista que tentou controlar as populações e pensou a sociedade como um laboratório racial, nada mais representativo do que esse conjunto robusto de instituições.
Mas voltemos ao nosso shopping. É fácil imaginar Lombroso passeando por lá e analisando, pesaroso, tanta mestiçagem reunida em um só espaço. Com certeza, estudando as características somáticas da clientela, o cientista se depararia com vários futuros criminosos e tentaria evitar que a sociedade sofresse com tantos males.
COREANOS E BOLIVIANOS. Afinal, por lá passeiam clientes com cores e feições orientais, negras, brancas, mestiças; sem esquecer da febre de consumo, também considerada estigma grave de degeneração. O Bom Retiro, que nasceu como um bairro de imigração judaica, passou a ser habitado por coreanos e depois bolivianos – o que, para nosso pensador determinista, não cheiraria nada bem. Nosso homenageado, quem sabe, teria feito a festa, seguindo a máxima de que prevenir era muito melhor do que remediar. Talvez fizesse bom uso de seu livro de 1899, "Crimes, Suas Causas e Soluções", em que mostrou, de maneira definitiva, que diante de uma causa – a mestiçagem – só havia uma solução: o confinamento, a esterilização, o impedimento.
E digamos que o cientista se animasse a dar um pulo na Liberdade, para verificar, com seu admirador longínquo Nina Rodrigues, como a vizinhança acabou tintada pela imigração japonesa também pouco recomendada por ambos, que ajuizavam que o futuro de qualquer país civilizado só poderia ser branco, ou seja, europeu.
Melhor viver a ignorância dos crédulos e esquecer de dar nome (e sentido) aos bois, às ruas e aos shoppings. Lombroso poderia ser mesmo um retrato de um parente bondoso esquecido na parede. Como dizia Humpty Dumpty, famoso personagem de Lewis Carroll, "aquele que procura por nomes e rótulos na maioria das vezes se engana ou encontra um mau caminho".

2 comentários:

j. disse...

Lombroso não veste benetton no país dos mestiços... adorei a sacada, a Lilia segue ótima e a ironia do destino é fina, linda e bem feita...

camila antero disse...

Pertinente! não sabia que Lombroso tinha nome de shopping em São Paulo.Nem que Nina Rodrigues tinha nome de rua. È sabido que Nina se deitava com as inhaôs e frequentava terreiros. Atendia pobres até! não sei se só a título científico ele se embrenhava nos guetos.
Decaídos, falidos e imprestáveis. Não é de hoje que o Brasil é impopular no Brasil.

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Parabéns pelo blog! Estou seguindo.