Mensagem aos Formandos do Curso Noturno,
Faculdade de Direito da UFRGS [Ano Acadêmico 2013/2]
1. A Universidade de Padova, fundada
em 1222, foi considerada a capital científica do mundo entre 1400 e 1800. No
início dos 1400’s é o único ateneu do Veneto. Em 1678, laureou a primeira
mulher da história: Elena Lucrezia
Cornaro Piscopia. Além disso, durante muito tempo, foi a única Universidade
europeia a aceitar estudantes de religião hebraica e protestante e estrangeiros
em geral.
Desde a sua fundação, foi
constituída como “Universitas Scholarium”,
uma livre corporação na qual estudantes e mestres definiam, conjuntamente, o
rumo da formação acadêmica. No entanto, ao final do aprendizado, para conseguir
a láurea, o estudante deveria submeter-se a duas provas: uma privada e uma
pública. No final do século XV, o exame público ocorria no Duomo de Padova, em
solenidades regidas pelo Reitor, com a presença do Bispo e com a participação ativa
de toda a comunidade. O rito era extremamente formal e solene. O novo laureado
era vestido com uma suntuosa toga de seda, recebia uma grinalda de louros, um
cetro e um papiro contendo sonetos, cânticos e poesias que exaltavam as suas
virtudes morais e intelectuais.
A partir do século XIX, porém, os
estudantes passaram a fazer rituais próprios de profanação da pomposa cerimônia
oficial. Os primeiros rituais “goliárdicos” nascem como uma forma de paródia da
solenidade de láurea. O acadêmico, vestido em farrapos de seda, é “homenageado”
em um manifesto em que são sublinhadas as suas qualidades de beberrão, jogador
e boêmio, ao invés das suas virtudes morais e da sua sabedoria.
A partir dos anos 60, o rito
transformou-se em uma cerimônia em homenagem a Baco e a Vênus. Trata-se
de um ato com forte significado anticonformista, em oposição à mentalidade
burguesa sempre atenta à aparência (às vestes e aos cetros) e ao papel que o
indivíduo (laureado) ocupa na sociedade. Assim, neste ritual invertido, o
formando recebe, dos demais alunos, insultos, xingamentos e penitências, como forma
de lembrar que, apesar de ter conquistado um status social mais “elevado” com a láurea, não deixará nunca de ser
a mesma pessoa, com os seus mesmos méritos e deméritos. No evento – o que hoje
é possível acompanhar em inúmeras ruas das cidades universitárias italianas no
período de formatura –, o laureado deve passar por uma provação: ler um
“papiro” sem cometer qualquer erro, tarefa extremamente difícil em razão da
tensão do momento e, sobretudo, da dificuldade do texto (normalmente redigido em
difícil rima e em dialeto). A cada erro, o formando é obrigado a beber uma taça
de vinho, acompanhado dos amigos que cantam em coro: “dottore, dottore, dottore del buso del cul, vaffancul, vaffancul!”
[em tradução livre: doutor, doutor, doutor do olho do c#, vai tomar no c#, vai
tomar no c#].[1]
A cerimônia lembra um antigo rito
romano, quando o General, vitorioso na guerra, ao celebrar o seu triunfo, tinha
como dever refletir sobre uma espécie de mantra que um escravo repetia a
exaustão: “ricordati che sei mortale”.
2. Agambem, no Elogio della
Profanazione, lembra que os juristas romanos sabiam perfeitamente o que
significa “profanar”.
As coisas sagradas ou religiosas eram, de algum modo,
propriedade exclusivas dos Deuses. Nesta condição, eram subtraídas do livre uso
dos homens: “sacrílego era todo o ato que
violasse ou transgredisse esta sua especial indisponibilidade, que as reservava
[as coisas] exclusivamente aos deuses
celestes (nesse caso eram denominadas propriamente sagradas) ou infernais
(nesse caso eram simplesmente chamadas religiosas)” (Agambem).
“Sacrare” era o
termo que indicava a saída das coisas da esfera do direito humano. Profanar
significava restituir ao uso comum: “’profano’
– podia escrever o grande jurista Trebácio
– em sentido próprio denomina-se àquilo
que, de sagrado ou religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos
homens” (Agambem).
3. Meus queridos amigos, formandos. Antes de tudo, quero agradecer
imensamente a homenagem. Vocês acompanharam a minha trajetória de luta e resistência,
dentro e fora da Faculdade de Direito da UFRGS, e sabem o significado deste
ato. Eu, Mari e Inês não temos palavras para agradecer este gesto de
generosidade, de solidariedade, de cumplicidade.
Mas para além da figura (pessoal) do
professor homenageado, creio que esta escolha aponta, sobretudo, para uma
postura, para uma perspectiva acadêmica crítica, contestadora, problematizadora.
Como vocês sabem, a Faculdade de
Direito da UFRGS, há muito tempo, tem sido sequestrada por “falsos deuses”,
pessoas que acreditam ser aquele local res
própria. Fazem questão de viver encastelados, gozando (d)o público como se
privado fosse. Mais: fazem questão de ignorar qualquer manifestação ou
reivindicação dos alunos. Para estas “mentes totalitárias”, os alunos
simplesmente não interessam, os estudantes são apenas uma massa amorfa e
acrítica, recipientes vazios que precisam ser preenchidos pelo conteúdo do seu
pretenso saber.
Mas vocês, autênticos representantes
das “Jornadas de Junho”, têm
demonstrado que este estado de coisas não pode perdurar, pois a Universidade se
realiza nos e com os alunos.
Os formandos desta turma, ao longo
do curso, lutaram para que a Faculdade retornasse, para que fosse devolvida ao
uso e à propriedade dos alunos. Por este motivo, foram chamados de sacrílegos e os seus atos imputados profanos. Mas exatamente por isso
exerceram de forma virtuosa aquilo que de mais nobre existe no saber e no agir
acadêmicos: a rebeldia e a profanação. Vocês atravessaram a ponte,
desnudaram o Príncipe, questionaram os “podres poderes”, desestabilizaram o status quo. Sem dúvida, deixaram um legado
que ecoará por gerações no Castelo. Talvez um legado que possa, finalmente,
transformar a Faculdade em um espaço democrático e de respeito à diversidade.
Mas a virtude do agir passado não os
exime de seguir na luta, resistindo contra a decadência do pensamento único. Ocorre
que para seguir lutando para que as coisas “consagradas” (sacrare) sejam devolvidas ao uso e à propriedade dos homens, para
que sejam efetivadas como direito dos homens (profanadas), é fundamental recordar,
cotidianamente, a nossa condição de mortais.
Ao apropriar para o momento da formatura, é essencial ter presente de que o status do título não nos torna melhor do
que ninguém.
Por isso meu cântico, minha homenagem e meu anedótico
alerta: “dottore, dottore, dottore...”
Bologna, 12 de fevereiro de 2014
Salo de Carvalho
Professor homenageado, turma dos formandos do curso noturno da Faculdade de direito da UFRGS, ano acadêmico 2013/2
Professor homenageado, turma dos formandos do curso noturno da Faculdade de direito da UFRGS, ano acadêmico 2013/2
[1] Relato
a partir das informações do sítio da Universidade
de Padova (http://www.unipd.it/universita/storia-e-valori/storia) e da
página da Associazione Erasmus Padova (http://www.esnpadova.it/content/breve-storia-delluniversita-di-padova).
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