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domingo, 11 de julho de 2010

Violência de Gênero: O Caso Bruno

A Lis Pasini - antropóloga que recentemente foi motivo de um post aqui no Antiblog - enviou por e-mail um dos melhores textos que li sobre o Caso Bruno - que creio deveria ser nominado Caso Elisa.
O texto é da Débora Diniz e foi publicado no Estadão, hoje.

Patriarcado da Violência
Debora Diniz - Antropóloga e Proferrosa da UnB

A brutalidade não é constitutiva da natureza masculina, mas um dispositivo de uma sociedade que reduz as mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens

Eliza Samudio está morta. Ela foi sequestrada, torturada e assassinada. Seu corpo foi esquartejado para servir de alimento para uma matilha de cães famintos. A polícia ainda procura vestígios de sangue no sítio em que ela foi morta ou pistas do que restou do seu corpo para fechar esse enredo macabro. As investigações policiais indicam que os algozes de Eliza agiram a pedido de seu ex-namorado, o goleiro do Flamengo, Bruno. Ele nega ter encomendado o crime, mas a confissão veio de um adolescente que teria participado do sequestro de Eliza. Desde então, de herói e "patrimônio do Flamengo", nas palavras de seu ex-advogado, Bruno tornou-se um ser abjeto. Ele não é mais aclamado por uma multidão de torcedores gritando em uníssono o seu nome após uma partida de futebol. O urro agora é de "assassino".

O que motiva um homem a matar sua ex-namorada? O crime passional não é um ato de amor, mas de ódio. Em algum momento do encontro afetivo entre duas pessoas, o desejo de posse se converte em um impulso de aniquilamento: só a morte é capaz de silenciar o incômodo pela existência do outro. Não há como sair à procura de razoabilidade para esse desejo de morte entre ex-casais, pois seu sentido não está apenas nos indivíduos e em suas histórias passionais, mas em uma matriz cultural que tolera a desigualdade entre homens e mulheres. Tentar explicar o crime passional por particularidades dos conflitos é simplesmente dar sentido a algo que se recusa à razão. Não foi o aborto não realizado por Eliza, não foi o anúncio de que o filho de Eliza era de Bruno, nem foi o vídeo distribuído no YouTube o que provocou a ira de Bruno. O ódio é latente como um atributo dos homens violentos em seus encontros afetivos e sexuais.

Como em outras histórias de crimes passionais, o final trágico de Eliza estava anunciado como uma profecia autorrealizadora. Em um vídeo disponível na internet, Eliza descreve os comportamentos violentos de Bruno, anuncia seus temores, repete a frase que centenas de mulheres em relacionamentos violentos já pronunciaram: "Eu não sei do que ele é capaz". Elas temem seus companheiros, mas não conseguem escapar desse enredo perverso de sedução. A pergunta óbvia é: por que elas se mantêm nos relacionamentos se temem a violência? Por que, jovem e bonita, Eliza não foi capaz de escapar de suas investidas amorosas? Por que centenas de mulheres anônimas vítimas de violência, antes da Lei Maria da Penha, procuravam as delegacias para retirar a queixa contra seus companheiros? Que compaixão feminina é essa que toleraria viver sob a ameaça de agressão e violência? Haveria mulheres que teriam prazer nesse jogo violento?

Não se trata de compaixão nem de masoquismo das mulheres. A resposta é muito mais complexa do que qualquer estudo de sociologia de gênero ou de psicologia das práticas afetivas poderia demonstrar. Bruno e outros homens violentos são indivíduos comuns, trabalhadores, esportistas, pais de família, bons filhos e cidadãos cumpridores de seus deveres. Esporadicamente, eles agridem suas mulheres. Como Eliza, outras mulheres vítimas de violência lidam com essa complexidade de seus companheiros: homens que ora são amantes, cuidadores e provedores, ora são violentos e aterrorizantes. O difícil para todas elas é discernir que a violência não é parte necessária da complexidade humana, e muito menos dos pactos afetivos e sexuais. É possível haver relacionamentos amorosos sem passionalidade e violência. É possível viver com homens amantes, cuidadores e provedores, porém pacíficos. A violência não é constitutiva da natureza masculina, mas sim um dispositivo cultural de uma sociedade patriarcal que reduz os corpos das mulheres a objetos de prazer e consumo dos homens.

A violência conjugal é muito mais comum do que se imagina. Não foi por acaso que, quando interpelado sobre um caso de violência de outro jogador de seu clube de futebol, Bruno rebateu: "Qual de vocês que é casado não discutiu, que não saiu na mão com a mulher, né cara? Não tem jeito. Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher". Há pelo menos dois equívocos nessa compreensão estreita sobre a ordem social. O primeiro é que nem todos os homens agridem suas companheiras. Embora a violência de gênero seja um fenômeno universal, não é uma prática de todos os homens. O segundo, e mais importante, é que a vida privada não é um espaço sacralizado e distante das regras de civilidade e justiça. O Estado tem o direito e o dever de atuar para garantir a igualdade entre homens e mulheres, seja na casa ou na rua. A Lei Maria da Penha é a resposta mais sistemática e eficiente que o Estado brasileiro já deu para romper com essa complexidade da violência de gênero.

Infelizmente, Eliza Samudio está morta. Morreu torturada e certamente consciente de quem eram seus algozes. O sofrimento de Eliza nos provoca espanto. A surpresa pelo absurdo dessa dor tem que ser capaz de nos mover para a mudança de padrões sociais injustos. O modelo patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens. Bruno não é louco, apenas corporifica essa ordem social perversa.

Outra hipótese de compreensão do fenômeno é a persistência da impunidade à violência de gênero. A impunidade facilita o surgimento das redes de proteção aos agressores e enfraquece nossa sensibilidade à dor das vítimas. A aplicação do castigo aos agressores não é suficiente para modificar os padrões culturais de opressão, mas indica que modelo de sociedade queremos para garantir a vida das mulheres.

14 comentários:

Fabica disse...

"O modelo patriarcal é uma das explicações para o fenômeno da violência contra a mulher, pois a reduz a objeto de posse e prazer dos homens. Bruno não é louco, apenas corporifica essa ordem social perversa".
Tramitam no Juizado de Violência Doméstica, único no estado do RS, 14.ooo processos. Desde a sua criação, em 2007, já ingressaram 27.000 processos. São 100 a 150 pedidos de medidas protetivas por semana. Brunos, Alexandres, Marcos e Antonios são produto de uma sociedade patriarcal que atenta diariamente contra os direitos humanos das mulheres.

Zé disse...

Gostei do texto, mas não acho que a sociedade seja patriarcal. A sociedade é a sociedade e o patriarcalismo é algo que faz parte dela. Essas nomeações podem até ter certa efetividade discursiva, mas não fazem muito sentido. A sociedade é várias outras coisas também, e se fossemos listar todas o patriarcalismo seria só mais uma de quatrocentas nomeações diferentes. Quanto ao discurso, ser a sociedade patriarcal serve como acusação ou como desculpa? Uma denúncia ou uma justificativa? Enfim, homens matam mulheres, homens matam homens, homens matam cães e matam gatos. E me parece que serão ainda mais responsabilizados por atos grotescos quando não houver justificativas nomeáveis servindo como escusa. Não vejo muita utilidade na constituição de uma memória histórica que evite atrocidades desde reduções demasiadas. Sobre o caso, tem textos "explicando" o homícidio que partem da crítica das celebridades, a violência das favelas brasileiras onde o Bruno cresceu e etc e etc e etc. Todas estão certas.

Ricardo Timm de Souza disse...

E enquanto o caso Bruno-Samudio - um entre milharese milhares - segue iluminado, horrorizando a todos, ocupando praticamente todos os espaços de indignação, o "ventre frutífero onde se gera o monstro", na prototípica situação do estupro/assemelhado de S. Catarina, se arrasta à moda dos vermes fora do campo dos holofotes, para máxima conveniência dos interesses envolvidos. Nada é por acaso.

Anônimo disse...

o texto até faria sentido, se fosse sobre um casal, um relacionamento estável, se o patriarcado existisse, se, se e se.

Anônimo disse...

o interessante é que esse tipo de crime aumentou seguindo a diminuição do suposto patriarcado.

não seria interessante refletir sobre isso?

M. M. Moura disse...

A sociedade tem homens que matam pessoas, então a culpa é do "patriarcado". Uma mulher mata um homem, culpa do "patriarcado". Poucas mulheres se interessam por física teórica, culpa do "patriarcado". Existem poucas mulheres nas cursando "engenharia da computação", culpa do "patriarcado".

o texto cria uma idéia de mais um caso de companheira agredida pelo marido/namorado/companheiro, o que todos sabem não ser verdade.

Se um homem entre milhões mata, a culpa recai sobre todos os demais. Essa é uma forma correta de analisar o fato?

o Maníaco do PArque recebeu mais de 1 mil cartas de mulheres apaixonadas após 1 mês de prisão. A culpa também é do "patriarcado"

Unknown disse...

Parece que o patriarcado é “chavão” que respalda o movimento feminista.

Luiz Fernando Pereira Neto disse...

permissa venia, reproduzi no meu blog.
Abração,
Nando

Anônimo disse...

Se é fato, como disse o Zé, que ser patriarcal é uma das caracterísitcas da sociedade, então não me parece que o texto careça de sentido, pois como ele mesmo disse há diversos textos abordando o acontecimento, por diversas perspectivas e estão todos "certos".

Zè disse...

Realmente, não acho que o texto careça de sentido, inclusive disse que gostei. É muito improvável que possamos explicar as causas de algo tão trágico, então na falta de exatidão o melhor é reunir perspectivas, desde que elas façam sentido. A perspectiva do texto é interessante, mas me parece em desacordo com certo exagero panfletário do título. Acho o mesmo dos outros jargões forçados deste caso, "a cultura das celebridades ", "a violência adquirida por osmose por quem nasceu em zonas de conflito", as "psicopatias" diagnosticadas via televisão e etc. Toda vez que ocorre um evento trágico, saltitam clichês legitimadores do "eu avisei que o mundo É isso ou aquilo".

Anônimo disse...

“Devo muito de minha cultura à televisão. Cada vez que o aparelho lá de casa era ligado, eu ia para o meu quarto ler um livro.” (Grouxo Marx)

Down the Rabbit-Hole disse...

"o interessante é que esse tipo de crime aumentou seguindo a diminuição do suposto patriarcado" - Será que que nesse caso a ausência de conflito não deriva apenas da submissão feminina? Se a mulher não incomoda em casa, e pelo contrário, ainda serve faceira o varão e a prole, as chances de haver conflito diminuem. Acho que existe muita dificuldade em conviver com a liberdade feminina. É claro que isso não quer dizer que todos os homens sintam a mesma dificuldade, etc, etc... mas é bem mais fácil conquistar a paz no lar quando as mulheres não representam nenhum perigo. Só a título de divagação: se a Eliza não tivesse incomodado o Bruno será que teria morrido? Acho que não. A propósito do texto, acho que essa perspectiva, dentre tantas possíveis, não é melhor.

M.N.A. disse...

1.Acho que a autora do texto confundiu alhos com bugalhos. O crime foi chocante, assustador, brutal? SIM! O crime foi praticado por um cara que se achava acima de tudo e todos? SIM! Ele tem como possível cerne o machismo/patriarcalismo historicamente presente em nossa sociedade? SIM! Mas o crime aconteceu também por milhares de outros fatores, igualmente relevantes. Essa tendência de procurar a CAUSA do crime faz com que nos (des)foquemos para logo depois percebermos que combater aquilo que se mostrava como CAUSA não adiantou para reverter o quadro criminógeno. A 'Etiologia do Crime' já estudou isso há tempos atrás e percebeu-se que não funcionou como deveria. Mas me parece que os grupos de Direitos Humanos ainda estão historicamente 'presos' nessa perspectiva.

Anônimo disse...

Eliza Samúdia está morta? Aonde? O corpo dela já foi achado? Como vc pode afirmar isso com toda certeza?

Eu acho que ela pode estar morta, mas é uma suposição. Acho que é cedo pra afirmar. Não temos autoria e nem materialidade comprovada, apenas temos o que a mídia enfia nas nossas cabeças.