Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.
De tanto te pensar, me veio a ilusão.
A mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, tenho nada,
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cismos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
De muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n'água. (Hilda Hilst, 1930-2004)
Para Mari, que pensou que eu havia falado para todos mas esquecido de falar para ela.
Logo ela, que me mantém vivo.
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