[Carvalho, Salo de. Ainda sobre os Laudos Criminológicos. Disponível em http://antiblogdecriminologia.blogspot.com]
Ainda Sobre os Laudos Criminológicos
O debate sobre a validade de exames criminológicos que verifiquem a possibilidade de o condenado reincidir é antigo na literatura jurídica, psicológica e psiquiátrica.
O primeiro problema diz respeito às questões éticas que envolvem a prática dos profissionais psis. Assim, questiona-se qual o tipo de relação que deve existir entre o profissional da área da saúde (psiquiatra, psicólogo e assistente social) e o periciando. As indagações que informam este debate são acerca de quem é efetivamente o destinatário do saber técnico (juiz ou condenado) e de quais são os limites éticos da divulgação, mesmo processual, das informações colhidas durante o acompanhamento pericial.
O segundo problema é de ordem epistemológica: as ciências psis (psiquiatria e psicologia) dispõem de instrumentos que possam com um mínimo de consistência predizer as condutas futuras daqueles sujeitos que sofreram encarceramento em decorrência de uma condenação criminal? E se a resposta for positiva, qual a fundamentação teórica destes modelos e quais os limites éticos que devem ser colocados ao saber preditivo.
Deste segundo problema decorre naturalmente um terceiro, de ordem instrumental. Isto porque mesmo aqueles profissionais que crêem na possibilidade de as ciências psis projetarem condutas futuras, existem inúmeros que afirmam que (1º) as ferramentas disponíveis não são idôneas para analisar pessoas em situação de encarceramento e que (2º) os profissionais do sistema penitenciário nacional não possuem formação adequada para realizar este tipo de análise.
Dos problemas éticos, epistemológicos e instrumentais – todos relativos à área da saúde – nasce uma quarta ordem de indagações, provenientes da área jurídica. Neste campo, a crítica que se estabelece é fundamentalmente em relação à inadequação das práticas periciais com os comandos constitucionais do devido processo penal. Assim, inúmeros juristas sustentam que (1º) as perícias são utilizadas como provas tarifadas (ofensa ao princípio do livre convencimento motivado); (2º) que o periciando deveria ser informado que está sendo submetido a um procedimento que pode redundar em diminuição de direitos e, portanto, que tem direito ao silêncio (proibição da produção de prova contra si mesmo) e à contestação do laudo (contraditório); e, finalmente, (3º) que a negativa de direitos com base em juízos (presunções) de condutas delitivas futuras ofende a presunção constitucional de inocência.
Todavia, para além destes intermináveis debates – muitas vezes desorganizados, com a sobreposição de argumentos de distintas ordens – uma nova questão resta aberta.
A questão, relacionada com o problema terceiro, direcionada aos profissionais que crêem na hipótese de os laudos preditivos sustentarem decisões judiciais, diz respeito aos falsos negativos.
Explico.
O resultado positivo do laudo, ou seja, quando o profissional afirma que determinado sujeito apresenta indicativos de que voltará a cometer delitos (reincidência) – resultado invariavelmente apresentado nos casos de crimes graves – produz dois efeitos. Se o juiz adota o laudo e nega a progressão de regime ou o livramento condicional, a questão está em tese resolvida. Face ao prognóstico, mantém-se o sujeito encarcerado. Mas também está razoavelmente resolvida, sob o aspecto técnico-científico, se o juiz contaria o laudo, concede o direito e o sujeito reincide. Neste caso, o exame é reafirmado.
No entanto, tenho visto poucas problematizações sobre os resultados negativos dos laudos, ou seja, quando a perícia conclui que o sujeito não apresenta risco de reincidência. Em sendo liberado, se o sujeito efetivamente não pratica novos delitos, o exame é referendado. Ocorre que há uma hipótese, bastante comum no cotidiano da execução penal, que são os falsos negativos, isto é, situações em que a perícia afirma que não há risco de reincidência, o juiz concede o direito e o condenado reincide.
Nesta situação, penso que caberia indagar: os casos de falsos negativos – que tenho a impressão, pelo acompanhamento da matéria nos Tribunais, que ocorrem de forma mais corriqueira que os positivos – não evidenciam com maior propriedade a falta de consistência desta prática?
Elaborada a questão de outra maneira: independente da postura político-criminal (punitivismo ou garantismo) adotada, o volume de falsos negativos, associado com as críticas éticas, epistemológicas e instrumentais (psicológicas e jurídicas), não torna este instrumento altamente questionável?
O estilo de atuação dos técnicos das áreas da saúde centrado na elaboração de prognoses de reincidência não evidencia uma prática altamente temerária? Temerária para o apenado, que fica refém de um juízo prognóstico para efetivar os seus direitos; temerária para a sociedade, que projeta uma segurança inexistente no laudo; temerária para os atores judiciais, que crêem em uma verdade pericial frágil; temerária para os próprios técnicos, que se fragilizam em cada ocorrência contrária à sua prognose (falsos negativos e falsos positivos).
Nestas condições, não é razoável o entendimento do Conselho Federal de Psicologia que, a partir do levantamento das inúmeras críticas e dos inesgotáveis dissensos em relação aos laudos, entendeu ser prudente suspender a aplicação do instrumento?