O grande parceiro
Alexandre Morais da Rosa (na foto, palestrando com
Warat) enviou importante e referencial decisão sobre porte de drogas, que permite analisar as possibilidades o julgado argentino no Brasil.
Autos n° 023.07.141815-9
Ação: Ação Penal - Tóxicos/Especial
Autor:Ministério Público
Denunciado:Alex Sandro da Silva
Vistos etc.
1. Trato de ação penal proposta pelo Ministério Público em face de Alex Sandro da Silva, imputando a este a conduta descrita no art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, consoante denúncia de f. II-III.
2. O flagrante foi homologado (f. 42). Devidamente notificado (f.56/57), não apresentou defesa, sendo nomeado dativo. Defesa prévia (f. 81/82). Recebida a denúncia, bem assim instaurado incidente de dependência toxicológica (f. 84/85), foi aprazada audiência de instrução e julgamento. Na ocasião foi interrogado o acusado e inquirida uma testemunha da acusação. Em face do excesso de prazo configurado, concedeu-se ao acusado a liberdade provisória (f. 95/96). Laudo de dependência toxicológica (f. 116/118). Em nova audiência, colhida prova testemunhal restante, encerrando-se a instrução. Em alegações finais o Ministério Público requereu a desclassificação para o art. 28 da Lei n. 11.343/06. A defesa, por seu turno, afirmou que a droga era para uso próprio, requerendo, nos termos do art. 28, a aplicação de apenas uma advertência quanto ao uso de drogas (inciso I, art. 28, Lei 11.343/06).
É o breve relatório.
DO TRÁFICO
A Constituição da República ao organizar a estrutura do Poder Judiciário e acometer ao Ministério Público o lugar de acusador no processo penal, com a defesa no oposto, ao finalidade de garantir o contraditório, deixou o juiz no lugar de espectador, ou seja, descabe qualquer pretensão probatória na gestão da prova (MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Crítica à teoria geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001). E a realização do Processo Penal acusatório é acolhida como tarefa democrática inafastável, não se confundindo com as meras formas processuais, mas sim como procedimento em contraditório (Cordero e Fazzalari), produzindo significativas alterações no modelo utilizado no Brasil (MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a bricolage de significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005). Neste pensar, o papel desempenhado pelo juiz e pelas partes deve ser acompanhado de 'garantias orgânicas' e 'procedimentais', consistindo na diferenciação marcante entre os modelos, conforme acentua Ferrajoli (Direito e Razão. São Paulo: RT, 2001, p. 452): "pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. Inversamente, chamarei inquisitório todo sistema processual em que o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas, produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da defesa." A separação das funções do juiz em relação às partes se mostra como exigida pelo 'princípio da acusação', não podendo se confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade de partes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional. Entendida nesse sentido, a garantia da separação representa, de um lado, uma condição essencial do distanciamento do juiz em relação às partes em causa, que é a primeira das garantias orgânicas que definem a figura do juiz, e, de outro, um pressuposto do ônus da contestação e da prova atribuídos à acusação, que são as primeiras garantias procedimentais da jurisdição, conforme Ferrajoli. Acrescente-se que a acusação precisa ser 'obrigatória' no sentido de evitar ponderações discricionárias – condições subjetivas de proceder – do órgão acusador, tutelando o 'princípio da igualdade de tratamento' estatal e, ainda, que esse órgão deve ser público e dotado das mesmas garantias orgânicas do julgador. A assunção do modelo eminentemente acusatório, segundo Binder (BINDER, Alberto M. Iniciación al Proceso Penal Acusatorio. Campomanes: Buenos Aires, 2000, p. 7), não depende do texto constitucional – que o acolhe, em tese, no caso brasileiro, apesar de a prática o negar –, mas sim de uma 'auténtica motivación' e um 'compromiso interno y personal' em (re)construir a estrutura processual sobre alicerces democráticos, nos quais o juiz rejeita a iniciativa probatória e promove o processo entre partes (acusação e defesa). Com isto bem posto, descabe qualquer possibilidade de o juiz condenar quando o representante do Ministério Público requer a absolvição. Assim proceder seria uma fraude ao sistema acusatório.
Com efeito, o representante do Ministério Público requereu a desclassificação para a imputação prevista no art. 28 da Lei n. 11.343/06. Só resta discutir esta imputação e não a do art. 33, da Lei n. 11.343/06, porque o art. 385 do CPP, por evidente, não foi recepcionado. Somente quem está, ainda, premido pela mentalidade inquisitória pensa que o Estado pode condenar quando o autor da ação penal não requer.
Da análise do apurado resta evidenciado pelo depoimentos dos policiais que o acusado, de fato, foi encontrado com droga (f. 121), aliás, apreendida (f. 13), sem que apresentasse, todavia, elementos de imputação na conduta de tráfico, o próprio policial afirmou que "não viu o acusado vendendo droga" (f. 94). Remanesce, portanto, a possível imputação do art. 28 da Lei n. 11.343/06. O acusado reconhece, de seu turno, que a droga era para seu consumo próprio (f. 93), situação circundada pelo Laudo de Dependência Toxicológica (f. 116/118), bem assim o Ministério Público reconhece que não há provas sobre envolvimento do acusado com o tráfico.
Alexandre Bizzotto e Andreia de Brito Rodrigues (Nova Lei de Drogas: Comentários à Lei n. 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 40-42) apontam: "Não pode ser descurado que a Constituição Federal de 1988 elegeu o Estado Democrático de Direito para ser o ser arquétipo. Dentro deste contexto, alguns valores constitucionais emergem para justificar a busca da democracia substancial, no qual os direitos, mais do que belos discursos, interferem efetivamente na realidade social. Pertinente na questão da criminalização do porte de substância entorpecente é a compreensão sobre aos valores constitucionais do respeito ao ser diferente e da igualdade, bem como do princípio constitucional da intimidade. (...) No plano concreto, a criminalização do porte de substância entorpecente dá uma bofetada no respeito ao ser diferente, invadindo a opção moral do indivíduo. Há uma nítida reprovação a quem não segue o padrão imposto. (...) Sob outro enfoque, "a simples posse de drogas para uso pessoal, ou seu consumo em circunstâncias que não envolvam perigo concreto para terceiros, são condutas que, situando-se na esfera individual, se inserem no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado o Estado - e, portanto o Direito - penetrar. Assim como não se pode criminalizar e punir, como, de fato, não se pune, a tentativa de suicídio e a autolesão, não se podem criminalizar e punir condutas, que menos danosas do que aquelas, podem encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão". (KARAN, Maria Lúcia. Revisitando a sociologia das drogas. Verso e reverso do controle penal, p. 136.) Vale salientar que integra a Constituição Federal a dignidade da pessoa humana na qualidade de valor constitucional. A criminalização de conduta exige o dano social para que não se viole o ser humano em sua integralidade de proteções. Ao usar droga (portar), a pessoa age nos estritos limites de sua intimidade constitucionalmente garantida. Permitir que a truculência do Estado Penal com todo o seu aparato invada a tranqüilidade da pessoa, se traduz na mais violenta marca da intolerância e do autoritarismo, incompatíveis com o Estado Democrático de Direito. Ressalta-se que o bem penal jurídico tutelado no tipo do artigo 28 da lei 11.343/06 é a saúde pública. O uso afeta a saúde individual e não a pública. A incolumidade pública fica sossegada com o uso individual. Se não há lesão ao bem jurídico tutelado não há crime."
Continuo entendendo conforme decidia na 5ª Turma de Recursos, de Joinville, na Apelação Criminal n. 173, de Jaraguá do Sul, cujas razões seguem abaixo, a saber, inexiste crime porque ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 da Lei n. 11.343/06 é a 'integridade física' e não a 'incolumidade pública', diante da ausência de transcendência da conduta, e a Constituição da República (art. 3º, I e art. 5º, X), de cariz 'Liberal', declara, como Direito Fundamental, consoante a Teoria Garantista (Ferrajoli), a liberdade da vida privada, bem como a impossibilidade de penalização da auto-lesão sem efeitos a terceiros, sendo certo a necessidade da a declaração da inconstitucionalidade parcial sem redução do texto do consumo. Essa possibilidade hermenêutica - nulidade parcial sem redução do texto - aplica-se, ao meu sentir, nos casos de porte de pequenas quantidades para uso próprio (quer de adolescentes como adultos), nos quais os usuários devem ser tratados e não segregados, posto que o simples aniquilamento da liberdade pouco contribui para o efetivo enfrentamento do problema, como já demonstrado em diversos momentos históricos (Salo de Carvalho e Rosa del Omo).
Cumpre recordar, por oportuno, a discussão proposta por Rodriguez entre os modelos de Hart e Dworkin acerca dos casos difíceis (hard cases), na qual analisam o caso de um cidadão que requereu junto a Corte Suprema da Colômbia a autorização para o porte e o consumo de doses pessoais de drogas. Após discorrer-se sobre a textura aberta das normas jurídicas, sobre os problemas da discricionariedade judicial, Hart asseveraria que a inconstitucionalidade da proibição do porte e uso de quantidades pessoais de drogas encontra apoio na princípio constitucional do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade da pessoa humana. Isto porque o Estado não deve assumir uma postura paternalista frente aos seus cidadãos, devendo garantir o direito impostergável do cidadão de conduzir sua vida conforme lhe convier, desde que não violados direitos de terceiros. "Herbert sigue sus convicciones morales y políticas liberales y sostiene que del derecho al libre desarrollo de la personalidad se sigue sin duda la inconstittucionalidad de la prohibición." De outra face, Dworkin, com seu método Hércules, fundamentado nos princípios, defende que existe a possibilidade de se apurar a resposta correta (Direito como integridade) e, na hipótese, o Juiz-Hércules deve se basear nos princípios mais valiosos do ponto de vista moral e político, consentâneos com as práticas constitucionais. Assim é que "La decisión de Hércules no es determinada poe el hecho de que la mayoria de los ciudadanos piense que se debe penaliza el porte y consumo de dosis personales de droga, porque la tarea del juez es proteger derechos, incluso - y sobre todo - contra el parecer de la mayoria. En este caso, la protección del derecho al libre desarollo de la personalidade milita em favor de la inconstitucionalidad de la prohibición."
Na mesma linha foi a decisão da Corte Suprema Argentina, a qual declarou inconstitucional a criminalização de pequenas quantidades de droga para consumo próprio, consoante explica Romina A Sckmunck da Universidade de Córdoba: "En dichos fallos se estabelece que: El art. 19 C.N impone límites a la actividad legislativa consistentes en exigir que no se prohíba una conducta que desarrolle dentro de la esfera privada entendida ésta no como la de las acciones que se realizan en la intimidad, protegidas por el art. 18 C.N, sino como aquellas que no ofendan al orden, a la moralidad pública, esto es que no prejudiquen a terceros. Las conductas del hombre que se dirijan sólo contra sí mismos, quedan fuera del ámbito de las prohibiciones. No está probado - aunque si reiteradamente afirmado dogmáticamente - que la incriminácion de simple tenencia de estupefacientes, evite consecuencias negativas concretas para el bienestar y la seguridad general. La construcción legal del art. 6 de la ley 20.771, al preveer una pena aplicable a un estado de cosas, y al castigar la mera creación de un riesgo, permite al intérprete hacer alusión simplesmente a prejuicios potencilaes y peligros abstractos y no a danõs concretos a terceros y a la comunidad (Fallos de la C.S.J.N/86:1392)." Mais adiante continua: "En los considerandos del fallo "Bazterrica" se establece que los motivos que respaldan una prohibición como la contenida en el art. 6 de la ley 20.771 pertenecen principalmente a alguno de los siguientes grupos: 1. juicios de carácter ético; 2. razones de política global de represión del narcotráfico; 3. argumentos relativos a la creación de un grave peligro social. En relación al primer grupo de argumentos se dijo: "...no podría el derecho positivo prohibir toda acción de la que pudiere predicarse que resulta moralmente ofensiva ya que no es función del Estado establecer el contenido de los modelos de excelencia ética de los individuos que lo componem, sino asegurar las pautas de una convivencia posible y racional, al cabo pacifica que brinde una igual protección a todos los miembros de una comunidad creando impedimentos para que nadie pueda imponer sus eventuales "desviaciones" morales a los demás..." Arremata: "Podríamos sostener a partir de estos argumentos que el Estado pretende imponer una moral (penando una acción privada, como es la tenencia de estupefacientes para uso personal, sin que ello se manifieste concretamente en daños a terceros al orden público en general). Sin embargo no nos seria posible afirmar esto, al menos desde el punto de vista constitucional, ya que a nuestro derecho penal positivo le há sido trazado un límite infranqueable por el art. 19 C.N em la parte que dice: "Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados". "En lugar de pretender imponer una "moral", el Estado puede reconocer un àmbito de libertado moral, posibilitando de éste modo la conducta moral de sus habitantes porque el mérito moral surge justamente cuando se tuvo la posibilidad de lo inmoral" (RADBRUCH). Por ésta forma de Estado y de derecho se decide nuestro art. 19 constitucional, eligiendo así el respeto de la dignidad humana com el reconocimiento de la autonomía moral". (ZAFFARONI/97:45)."
Assim é que a decisão invocada, proferida pela Corte Suprema Argentina, longe de autorizar o consumo ilimitado, pretende, em resgatando o primado constitucional da liberdade de autogoverno dos cidadãos da República, sem discursos totalitários (no caso da droga, americanizados), ensejar o tratamento daqueles (que quiserem e) envolvidos com drogas ao invés do simples aniquilamento. É, em suma, reconhecer a dignidade da pessoa humana, enfrentando a questão das drogas de maneira séria e democrática.
Desta forma, presente o primado material da Constituição (garantismo de Ferrajoli), bem assim da existência do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito impostergável de escolha (liberdade) do sujeito por situações que lhe digam respeito (CR, art. 3º, I e 5º, X), inalienados - por serem fundamentais, adotando-se a visão contratualista de Locke -, utilizando-se, ainda, do recurso hermenêutico da nulidade/inconstitucionalidade parcial sem redução do texto, cumpre declarar a inconstitucionalidade material sem redução do texto do art. 28 da Lei n. 11.343/06, na hipótese de porte e consumo de doses pessoais de droga, rejeitando-se, assim, a teoria da existência de uma difusa saúde pública!
O saudoso professor Alessandro Baratta deixou evidenciado em toda sua obra que a maior resistência à descriminilização é da opinião pública. Todavia, essa atitude repressiva desfruta do aspecto simbólico e proporciona a ilusão da segurança, bem como da resolução do conflito. A ilusão é perfeita na cultura do repasse de responsabilidades, as quais, ao final, acabam incidindo na pessoa da própria vítima/autor. É preciso, pois, ter-se a coragem de tratar o problema social das drogas como problema de saúde pública, como deixa claro Vera Malaguti Batista. Essa mudança de perspectiva é necessária para o efetivo cumprimento da promessa de dignidade da pessoa humana e do reconhecimento do adolescente como indivíduo em situação de formação. Destaco, por fim, a visão lúcida de Nilo Batista: "Pessoas que realmente sejam viciadas em drogas - lícitas ou ilícitas - precisam de ajuda, e sua família, seus amigos, sua comunidade, seus colegas, seus companheiros de trabalho, grupos especialmente capacitados de pessoas que vivenciaram o mesmo problema, e até médicos, devem-lhes essa ajuda. O Estado pode fomentar os caminhos dessa assistência, mediante programas que facilitem recursos para sua execução. O sistema penal é absolutamente incapaz de qualquer intervenção positiva sobre o viciado. A descriminalização do uso de drogas abre perspectiva para uma abordagem adulta do problema e renuncia a tomar a sentença criminal como exorcismo."
Partindo-se do Direito Penal como última ratio, ou seja, como o último recurso democrático diante da vergonhosa história das penas, brevemente indicadas como de morte, privativa de liberdade e patrimonial, excluída a primeira, desprovida de qualquer fim ou respeito ao acusado, as demais se constituem em técnicas de privação de bens, em tese, proporcional à gravidade da conduta em relação ao bem jurídico tutelado, segundo critérios estabelecidos pelo Poder Legislativo, na perspectiva de conferir caráter abstrato e igualitário do Direito Penal. Resta, pois, absolvido, pois incabível a desclassificação, por não ser crime o art. 28 da Lei n. 11.343/06, no caso específico.
Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia ofertada pelo Ministério Público (f. II-III), para o fim de absolver Alex Sandro da Silva, já qualificado, da imputação que lhe é feita, art. 33, caput, da Lei n. 11.343/06, com fundamento no art. 386, VII, do CPP.
Fixo a remuneração do defensor dativo em 15 URH's, devendo-se expedir certidão.
Determino que seja oficiado à autoridade policial de origem a fim de que promova a destruição da droga apreendida à fl. 13, mediante termo que deverá ser juntado aos autos, nos termos do artigo 72 da Lei n. 11.343/06.
Ainda, determino a destruição da pochete e do cachimbo apreendidos nestes autos, por seu ínfimo valor econômico, devendo ser oficiado ao Secretário do Foro para que tome as providências necessárias ao cumprimento da presente decisão.
P. R. I.
Florianópolis (SC), 24 de julho de 2009.